AMOR
- deborahrodriguesb
- 23 de jan. de 2022
- 9 min de leitura

Um pouco cansada, com as compras deformando o novo saco de tricô, Ana subiu no bonde. Depositou o volume no colo e o bonde começou a andar. Recostou-se então no banco procurando conforto, num suspiro de meia satisfação.
Os filhos de Ana eram bons. Seu marido, sempre pronto a lhe ajudar, com seu jornal em mãos, dia após dia, sorrindo de fome. O calor era forte no apartamento que estavam aos poucos pagando. Mas o vento batendo nas cortinas que ela mesma cortara lembrava-lhe que se quisesse podia parar e enxugar a testa, olhando o calmo horizonte. Ana dava a tudo, tranqüilamente, sua mão pequena e forte, sua corrente de vida.
Certa hora da tarde era mais perigosa. Certa hora da tarde as árvores que plantara riam dela. Quando nada mais precisava de sua força, inquietava-se.
No fundo, Ana sempre tivera necessidade de sentir a raiz firme das coisas. E isso um lar perplexamente lhe dera. Por caminhos tortos, viera a cair num destino de mulher, com a surpresa de nele caber como se o tivesse inventado. O homem com quem casara era um homem verdadeiro, os filhos que tivera eram filhos verdadeiros. Sua juventude anterior parecia-lhe estranha como uma doença de vida. Dela havia aos poucos emergido para descobrir que também sem a felicidade se vivia: abolindo-a, encontrara uma legião de pessoas, antes invisíveis, que viviam como quem trabalha — com persistência, continuidade, alegria. O que sucedera a Ana antes de ter o lar estava para sempre fora de seu alcance: uma exaltação perturbada que tantas vezes se confundira com felicidade insuportável. Criara em troca algo enfim compreensível, uma vida de adulto. Assim ela o quisera e escolhera.
Sua precaução reduzia-se a tomar cuidado na hora perigosa da tarde, quando a casa estava vazia sem precisar mais dela, o sol alto, cada membro da família distribuído nas suas funções. Olhando os móveis limpos, seu coração se apertava um pouco em espanto. Mas na sua vida não havia lugar para que sentisse ternura pelo seu espanto — ela o abafava com a mesma habilidade que as lides em casa lhe haviam transmitido. Saía então para fazer compras ou levar objetos para consertar, cuidando do lar e da família à revelia deles. Assim chegaria a noite, com sua tranqüila vibração. De manhã acordaria aureolada pelos calmos deveres. Encontrava os móveis de novo empoeirados e sujos, como se voltassem arrependidos. Quanto a ela mesma, fazia obscuramente parte das raízes negras e suaves do mundo. E alimentava anonimamente a vida. Estava bom assim. Assim ela o quisera e escolhera.
O bonde vacilava nos trilhos, entrava em ruas largas. Logo um vento mais úmido soprava anunciando, mais que o fim da tarde, o fim da hora instável. Ana respirou profundamente e uma grande aceitação deu a seu rosto um ar de mulher. O bonde se arrastava, em seguida estacava. Até Humaitá tinha tempo de descansar. Foi então que olhou para a mulher parada no ponto.
Provavelmente ela tinha em torno de 1,60m, era pequena e delicada. Por trás da roupa colorida, algumas tatuagens chamavam atenção sobre a pele morena.
Mas o que realmente chamou a atenção e a diferenciou dos outros ali passando, foi aquele sorriso marcante estampado no rosto.
O que havia mais que fizesse Ana se aprumar em desconfiança? Alguma coisa intranqüila estava sucedendo. Então ela percebeu: seu coração batia mais forte... Batia mais forte por uma mulher.
Ana ainda teve tempo de pensar por um segundo que os irmãos viriam jantar — o coração batia-lhe violento, espaçado. Inclinada, olhava aquela mulher profundamente, como se olha o que não nos vê. Ela sorria despretensiosamente. Os olhos cerravam, uma leve marca na bochecha aparecia. Ana olhava-a. Cada vez mais inclinada — o bonde deu uma arrancada súbita jogando-a desprevenida para trás, o pesado saco de tricô despencou-se do colo, ruiu no chão — Ana deu um grito, o condutor deu ordem de parada antes de saber do que se tratava — o bonde estacou, os passageiros olharam assustados.
Incapaz de se mover para apanhar suas compras, Ana se aprumava pálida. Uma expressão de rosto, há muito não usada, ressurgira-lhe com dificuldade, ainda incerta, incompreensível. O moleque dos jornais ria entregando-lhe o volume. Mas os ovos se haviam quebrado no embrulho de jornal. Gemas amarelas e viscosas pingavam entre os fios da rede. A mulher interrompera o sorriso estampado no rosto, observava atenta o bonde, tentando entender o que sucedera. O embrulho dos ovos foi jogado fora da rede e, entre os sorrisos dos passageiros e o sinal do condutor, o bonde deu a nova arrancada de partida.
Poucos instantes depois já não a olhavam mais. O bonde se sacudia nos trilhos e aquela mulher ficara atrás para sempre. Mas o mal estava feito.
A rede de tricô era áspera entre os dedos, não íntima como quando a tricotara. A rede perdera o sentido e estar num bonde era um fio partido; não sabia o que fazer com as compras no colo. E como uma estranha música, o mundo recomeçava ao redor. O mal estava feito. Por quê? como ela podia ter tal sentimento por uma mulher? A culpa a sufocava, Ana respirava pesadamente. Mesmo as coisas que existiam antes do acontecimento estavam agora de sobreaviso, tinham um ar mais hostil, perecível... O mundo se tornara de novo um mal-estar. Perceber uma ausência de lei foi tão súbito que Ana se agarrou ao banco da frente, como se pudesse cair do bonde, como se as coisas pudessem ser revertidas com a mesma calma com que não o eram.
O que chamava de crise viera afinal. E sua marca era o prazer intenso com que olhava agora as coisas, sofrendo espantada. O calor se tornara mais abafado, tudo tinha ganho uma força e vozes mais altas. Na Rua Voluntários da Pátria parecia prestes a rebentar uma revolução, as grades dos esgotos estavam secas, o ar empoeirado. Uma bela mulher de cabelos cacheados mergulhara o mundo em escura sofreguidão. Na calçada, dois namorados entrelaçavam os dedos sorrindo... E a mulher? Ana caíra numa culpa, numa sensação de incompreensão, extremamente dolorosa.
Ela apaziguara tão bem a vida, cuidara tanto para que esta não explodisse. Mantinha tudo em serena compreensão, separava uma pessoa das outras, as roupas eram claramente feitas para serem usadas e podia-se escolher pelo jornal o filme da noite — tudo feito de modo a que um dia se seguisse ao outro. E uma mulher sorrindo despretensiosa despedaçava tudo isso. E através da culpa aparecia a Ana uma vida cheia de náusea doce, até a boca.
Só então percebeu que há muito passara do seu ponto de descida. Na fraqueza em que estava tudo a atingia com um susto; desceu do bonde com pernas débeis, olhou em torno de si, segurando a rede suja de ovo. Por um momento não conseguia orientar-se. Parecia ter saltado no meio da noite.
Era uma rua comprida, com muros altos, amarelos. Seu coração batia de medo, ela procurava inutilmente reconhecer os arredores, enquanto a vida que descobrira continuava a pulsar e um vento mais morno e mais misterioso rodeava-lhe o rosto. Ficou parada olhando o muro. Enfim pôde localizar-se. Andando um pouco mais ao longo de uma sebe, atravessou os portões do Jardim Botânico.
Andava pesadamente pela alameda central, entre os coqueiros. Não havia ninguém no Jardim. Depositou os embrulhos na terra, sentou-se no banco de um atalho e ali ficou muito tempo.
A vastidão parecia acalmá-la, o silêncio regulava sua respiração. Ela adormecia dentro de si.
De longe via a aléia onde a tarde era clara e redonda. Mas a penumbra dos ramos cobria o atalho.
Ao seu redor havia ruídos serenos, cheiro de árvores, pequenas surpresas entre os cipós. Todo o Jardim triturado pelos instantes já mais apressados da tarde. De onde vinha o meio sonho pelo qual estava rodeada? Como por um zunido de abelhas e aves. Tudo era estranho, suave demais, grande demais.
Inquieta, olhou em torno. Fazia-se no Jardim um trabalho secreto do qual ela começava a se aperceber.Nas árvores as frutas eram pretas, doces como mel. Havia no chão caroços secos cheios de circunvoluções, como pequenos cérebros apodrecidos. O banco estava manchado de sucos roxos. Com suavidade intensa rumorejavam as águas. No tronco da árvore pregavam-se as luxuosas patas de uma aranha. A crueza do mundo era tranqüila.
Ao mesmo tempo que imaginário — era um mundo de se comer com os dentes, um mundo de volumosas dálias e tulipas. Os troncos eram percorridos por parasitas folhudas, o abraço era macio, colado. Como a repulsa que precedesse uma entrega — era fascinante, a mulher tinha nojo, e era fascinante.
A moral do Jardim era outra. Agora que a mulher a guiara até ele, estremecia nos primeiros passos de um mundo faiscante, sombrio, onde vitórias régias boiavam monstruosas. As pequenas flores espalhadas na relva não lhe pareciam amarelas ou rosadas, mas cor de mau ouro e escarlates. A decomposição era profunda, perfumada... Mas todas as pesadas coisas, ela via com a cabeça rodeada por um enxame de insetos, enviados pela vida mais fina do mundo. A brisa se insinuava entre as flores. Ana mais adivinhava que sentia o seu cheiro adocicado... O Jardim era tão bonito que ela teve medo do Inferno.
Era quase noite agora e tudo parecia cheio, pesado, um esquilo voou na sombra. Sob os pés a terra estava fofa, Ana aspirava-a com delícia. Era fascinante, e ela sentia nojo.
Mas quando se lembrou das crianças, diante das quais se tornara culpada, ergueu-se com uma exclamação de dor.Agarrou o embrulho, avançou pelo atalho obscuro, atingiu a alameda. Quase corria — e via o Jardim em torno de si, com sua impersonalidade soberba. Sacudiu os portões fechados, sacudia-os segurando a madeira áspera. O vigia apareceu espantado de não a ter visto.
Enquanto não chegou à porta do edifício, parecia à beira de um desastre. Correu com a rede até o elevador, sua alma batia-lhe no peito — o que sucedia? A culpa pela sensação vivenciada ao observar aquela mulher era tão violenta como uma ânsia, mas o mundo lhe parecia seu, sujo, perecível, seu. Abriu a porta de casa. A sala era grande, quadrada, as maçanetas brilhavam limpas, os vidros da janela brilhavam, a lâmpada brilhava — que nova terra era essa? E por um instante a vida sadia que levara até agora pareceu-lhe um modo moralmente louco de viver. Ela amava o mundo, amava o que escolheu para si — amava com nojo.
O que faria se seguisse o chamado da mulher? Iria sozinha... Ela precisava... Tenho medo, disse. O sangue subiu-lhe ao rosto, esquentando-o.
Deixou-se cair numa cadeira, com os dedos ainda presos na rede. De que tinha vergonha?
Não havia como fugir. Os dias que ela forjara haviam-se rompido na crosta e a água escapava. Estava diante da ostra. E não havia como não olhá-la. De que tinha vergonha? É que já não era mais culpa, não era só culpa: seu coração se enchera com a pior vontade de viver.
Já não sabia se estava do lado da mulher ou das espessas plantas. A mulher pouco a pouco se distanciara e em tortura ela parecia cada vez mais imaginar um minuto, um minuto sequer ao lado dela, acariciando-lhe os cabelos que pareciam tão macios. O Jardim Botânico, tranqüilo e alto, lhe revelava. Com horror descobria que poderia sentir aquilo por uma...mulher — e que nome se deveria dar à sua paixão violenta? Uma mulher me fez conhecer um lado de mim mesma que até então eu não conhecia, pensou espantada. Sentia-se banida porque ela nunca poderia levar aquilo para a frente. Ah! era mais fácil nunca ter experimentado tal sensação.
Humilhada, sabia que a mulher preferiria um amor mais fácil. E, estremecendo, também sabia por quê. A vida do Jardim Botânico chamava-a como um lobisomem é chamado pelo luar. Oh! mas ela amava a mulher! pensou com os olhos molhados. No entanto não era com este sentimento que se iria a uma igreja. Estou com medo, disse sozinha na sala. Levantou-se e foi para a cozinha ajudar a empregada a preparar o jantar.
Mas a vida arrepiava-a, como um frio. Era uma noite em que a culpa era tão crua como o amor ruim. Entre os dois seios escorria o suor.
Depois o marido veio ao seu encontro novamente, vieram os irmãos e suas mulheres, vieram os filhos dos irmãos.
Jantaram com as janelas todas abertas, no nono andar. Ana estava um pouco pálida e ria suavemente com os outros.
Depois do jantar, enfim, a primeira brisa mais fresca entrou pelas janelas. Eles rodeavam a mesa, a família. Cansados do dia, felizes em não discordar, tão dispostos a não ver defeitos.
Depois, quando todos foram embora e as crianças já estavam deitadas, ela era uma mulher bruta que olhava pela janela. A cidade estava adormecida e quente. O que a mulher desencadeara caberia nos seus dias? Mas com uma maldade de amante, parecia aceitar que da flor saísse o mosquito, que as vitórias-régias boiassem no escuro do lago. A mulher pendia entre os frutos do Jardim Botânico.
Caminhou para a sala e se deparou com seu marido diante de um jornal. Na capa, estampado com uma belíssima foto, a manchete “Lela Rodrigues, escritora emergente do Brasil, lança novo livro na cidade”.
Era ela. Ela então se chamava Lela.
Ana ficou espantada, sem reação. O marido, com medo da mulher, espiou-a com atenção. Depois atraiu-a a si, em rápido afago.
Ela então o abraçou.
— Não quero lhe perder, nunca! disse ela.
— Mas isso jamais irá acontecer, respondeu ele sorrindo.
Ela continuou sem força nos seus braços. Hoje de tarde alguma coisa tranqüila se rebentara, e na casa toda havia um tom humorístico, triste. É hora de dormir, disse ele, é tarde. Num gesto que não era seu, mas que pareceu natural, segurou a mão da mulher, levando-a consigo sem olhar para trás, afastando-a do perigo de viver.
Lela.
Antes de se deitar, como se apagasse uma vela, soprou a pequena flama do dia.
Nota: este texto é um experimento de Self Inserction - quando o autor participa da própria história, interagindo com as personagens que já existem naquele universo literário - baseado no conto Amor, do livro Laços de Família, de Clarice Lispector.




Comentários