o trem
- deborahrodriguesb
- 16 de abr. de 2024
- 4 min de leitura

bz
bZzzz
bzz
Se eu falasse, como será que eu contaria isso a você?
Se eu falasse…
Está caindo uma chuva forte lá fora, entro voando naquele trem com destino à terra das montanhas, na tentativa de me proteger do temporal. Sobrevoo lentamente todo o espaço do trem. Há ali famílias, madames com seus cachorrinhos, crianças chorando, casais fazendo aquilo de encostar a boca um no outro. Vou e volto pelo menos umas três vezes por toda a extensão dos vagões, até que reparo nela.
Em uma poltrona isolada, num cantinho da janela, uma moça está deitada encolhida, tremendo de frio, e parece não trazer nada com ela, apenas observa através do vidro embaçado a vegetação molhada pela chuva.
Ela é magra, parece alta e usa uma roupa muito brilhante, um salto gigante que eu não imagino nenhum humano andando nele. Deve machucar. Tem os cabelos lisos e compridos, com um aspecto de sujo grudado na cabeça que dá vontade de lamber. Reparo nas unhas enormes quando ela tira da blusa maior, jogada por cima do vestido, uma caixinha quadrada e um fio comprido.
Enfia aquele fio na caixinha e… na poltrona? Em alguns segundos a caixinha acende, fazendo ela apertar um pouco os olhos para enxergar. A caixinha começa a tremer e fazer um barulho bem parecido com o que eu faço quando voo. Acho estranho.
Fico ainda mais interessada naquela moça. Pouso por ali e passo a observar com meus olhos facetados.
Ela começa a bater os dedos sem parar na tela brilhante. Deduzo que algo importante tenha acontecido. A caixa começa a vibrar sem parar, mas ela ignora e continua a bater os dedos sobre ela, em silêncio, às vezes soltando apenas um longo suspiro, como se não soubesse lidar muito bem com o que está acontecendo.
Um tempo depois, um homem alto e vestido em um casaco com bolsos (que eu já vi em outros homens nas casas carregadas de comida e bom lixo que visitei) chega e senta no banco vazio ao lado dela. A moça num primeiro momento não percebe, já que ainda observa atentamente a caixinha em suas mãos. Quando levanta o olhar e o vê, ela arregala os olhos tão assustada que ficam parecendo os meus, e tenta levantar para sair dali, puxando o fio preso na poltrona. Ele a segura pelos braços finos, arrebentando a pulseirinha que reluzia tanto quanto o sol, e ela senta novamente. Escuto ele dizer para ela sentar e ficar calada, pois não queriam chamar atenção.
Interessante. Continuo a observar atentamente aqueles dois.
Ela volta a olhar pela janela embaçada. Então ele começa a falar em um tom baixo, que eu quase não escuto, não fosse a capacidade que desenvolvi de sintonizar a frequência dos humanos. “Me desculpa por ter te segurado esses dois dias no meu apartamento. Eu sei que deveria ter te entregado o carregador antes, mas estava tão bom te ter só pra mim, sentir seu corpo colado no meu, sua respiração ofegante no meu ouvido.” Ela olha para o lado. “Como você me achou?” Ele ignora e continua a falar.
“Você sabe como eu amo você. Já amava muito antes disso tudo. Independente do dinheiro, tudo que eu quero é você comigo.”
De repente ele para de falar. Encara o homem no banco à sua frente. O homem, baixinho e com um óculos transparente que toma conta de todo o seu rosto, parece estar registrando os dois com a sua própria caixa de tela brilhante. Ele para o rapaz que passa com uma bandeja cheia de comida e fala algo baixinho para ele.
O rapaz olha para o casal à minha frente, que desvia o olhar. A moça parece querer pedir socorro mas se volta para a janela embaçada.
O baixinho da cabeça lisa volta a falar, agora um pouco mais alto. “Eu tenho certeza que é ela.” Tem fotos para todo lado na internet “Após 48h sem notícias, jovem da família Faria, que receberia herança milionária em alguns meses, é dada como desaparecida”.
O rapaz olha para a caixinha de tela brilhante na mão do baixinho. Fala alguma coisa com a boca colada na roupa e o trem para. A expressão do casal muda completamente. A dela, parecendo aliviada. A dele, de completo desespero.
De repente inicia um alvoroço no vagão. Começo a voar para tentar ver por cima e entender o que está acontecendo. Chegam dois homens de chapéu e com as mãos na cintura, segurando umas coisas que pareciam pesadas. Começam a fazer várias perguntas ao casal. A moça fala sem jeito. “Eu consegui fugir e não sei como ele me encontrou aqui”. Vejo o homem tentando se defender.
Mas… bzzzzzZZZZZZZZZZZZzzzzzzzzzzZZZZZZZZZZZZz
Levo um tapa e caio dura no chão. Não sei se mais viva ou mais morta que aquela garota de salto, que certamente herdou mais que dinheiro, mas um trauma com aquele homem que dizia amá-la, mas que eu tenho minhas dúvidas.
Mas essa é a história que eu contaria se eu falasse. Pode ser que ele a ame. Que a história da herança seja inventada (já ouvi muitas invenções de humanos, eles são criativos). Que ela passou os tais dois dias com ele porque quis. Que o passeio de trem seja só para chamar atenção.
Pode bzzZZZZzzzzzzzser.




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